Coração de tinta, de Cornelia Funke

*Esta resenha pode conter spoilers sobre o enredo da série "Mundo de Tinta".


Cornelia Funke
Edição: 1 (456 páginas)
Editora: Cia. das Letras
ISBN: 9788535907728
Ano: 2006
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Sinopse:
Há muito tempo Mo decidiu nunca mais ler um livro em voz alta. Sua filha Meggie é uma devoradora de histórias, mas apesar da insistência não consegue fazer com que o pai leia para ela na cama. Meggie jamais entendeu o motivo dessa recusa, até que um excêntrico visitante finalmente vem revelar o segredo que explica a proibição. Quando Meggie ainda era um bebê, a língua encantada de Mo trouxe à vida alguns personagens de um livro chamado 'Coração de Tinta'. Um deles é Capricórnio, vilão cruel e sem misericórdia, que não fez questão de voltar para dentro da história de onde tinha vindo e preferiu instalar-se numa aldeia abandonada. Desse lugar funesto, comanda uma gangue de brutamontes que espalham o terror pela região, praticando roubos e assassinatos. Capricórnio quer usar os poderes de Mo para trazer de Coração de tinta um ser ainda mais terrível e sanguinário que ele próprio. Quando seus capangas finalmente sequestram Mo, Meggie terá de enfrentar essas criaturas bizarras e sofridas, vindas de um mundo completamente diferente do seu.

Em 2009, foi lançada a versão cinematográfica da obra. Enquanto sua contraparte literária rendeu excelentes críticas e coisas do gênero, o filme gerou dúvidas sobre como um livro tão bom teria originado um filme tão ruim. Pessoalmente, não acredito nisso. Adaptação não pode ser considerada uma transformação. Todavia, deixou a desejar. Por mais que seja um infanto-juvenil, custa fazer um filme um pouco mais longo? Desse jeito, talvez, a obra fosse mais bem desenvolvida.

Mo, o primeiro personagem introduzido na história, foi interpretado por Brendan Fraser. Um ator de poucos dramas na carreira concentrada em comédias românticas ou familiares. Não fez jus ao personagem literário – um homem que faria tudo por sua filha, mas não tão heroico quanto o ator americano. O único dessa nacionalidade no elenco, pra falar a verdade.

Meggie, sua filha, foi interpretada por Eliza Bennet. Uma excelente interpretação. A personagem é cheia de vida e coragem. Se arrisca por seus pais e amigos sem pestanejar. Uma leitora voraz, a personagem encontra em Elinor, a tia que criou sua mãe, características parecidas com as suas.  Esta tia, por sua vez, interpretada por Helen Mirren, no livro é mostrada como uma senhora idosa que liga pouco ou nada para sua aparência, sendo que, no filme, ela é exatamente o contrário – é "brega e chique". Uma personagem que é de um jeito e se torna exatamente sua antítese na suposta "adaptação".

E tem Dedo Empoeirado, o anti-herói. Só pensa em uma coisa: voltar pra casa. Para sua esposa, Roxanne. Ele acaba traindo Mo, revelando sua localização a Capricórnio, o que revela sua moral duvidosa. Ele faria qualquer coisa para reaver sua antiga vida. Foi interpretado por Paul Bettany. Uma atuação fantástica. Todos os percalços da sua relação conturbada com Mo foram bastante dramáticos. Perderam suas esposas na mesma noite. Se veem como amigos, mas Mo tem medo de que mais algo saia do livro, ao invés de só levar Dedo Empoeirado e trazer Resa.

Curiosamente, no livro, Coração de Tinta havia se tornado um livro raro. Descobre-se que isso é obra de Capricórnio. Ele procurou e queimou praticamente todos os exemplares do livro. Então Mo vai procurar seu escritor, Fenoglio, com esperanças de que ele ainda possua algum exemplar. Arrogante e megalomaníaco, interpretado por Jim Broadbent. "Escritor com complexo de Deus", se sente como pai de Capricórnio, pedindo desculpas por todo o mal que foi causado. Arrependido, tenta ajudar nossos heróis a se salvarem.

O vilão principal, trazido em primeira mão do livro, porcamente interpretado por Andy Serkis, se tornou ainda mais cruel desde que veio ao mundo real. No livro, ele era um líder de um grupo de incendiários. No mundo real, ascendeu a líder de uma organização grande e com requinte de crueldade. No filme, ele ficou quase cômico. Não vejo vantagem nessa escolha.

Na história original, apesar de manterem residência fixa, Mo e Meggie viajam por toda a Europa em natureza do emprego de Mo, um "doutor de livros". Aonde chamam, ele vai. No filme, essa natureza errante é deixada de lado. Desse jeito, eles rapidamente procuram abrigo na casa de Elinor, a tia rica e colecionadora de livros de Resa, sem muitas explicações. O fato é que eles estavam fugindo de Capricórnio.

Fora isso, tudo o mais permanece muito parecido/igual. Invariavelmente, é um dos meus livros favoritos. O melhor da série Mundo de Tinta. Os outros livros são até desprezíveis, em termos de continuidade. Cornelia Funke tem um problema sério com relação a isso. Ela tem uma fórmula imutável. O primeiro livro começa com uma aventura épica sem precedentes. O segundo livro tem uma expansão de mundo que envolve, geralmente, uma guerra. O terceiro, assim, é a conclusão. A guerra é vencida com todo tipo de reviravoltas. Isso será visto melhor na série Reckless. Esperem.

Nota d’A Editora: Eu sou completamente apaixonada por Cornelia Funke. Está além da minha compreensão como alguém pode não gostar do segundo e do terceiro livro da trilogia Mundo de Tinta. Ao contrário do que nosso colunista pensa, eu acho que, nos segundos livros de suas séries, Cornelia tende a expandir maravilhosamente um universo do qual só apresenta uma pequena fração no primeiro livro. Não significa que os livros posteriores sejam melhores, mas são uma proposta totalmente diferente. Pra quem não sabe, nos segundo e terceiro volumes da trilogia, os protagonistas de Mundo de Tinta vão eles próprios para dentro do livro do qual a história fala. E isso é incrível! A autora tem a chance de explorar um mundo criado inteiramente por ela, com lugares e personagens novos, tão envolventes quanto os anteriores. Cornelia é uma mestre da fantasia e sabe lidar de forma primorosa com a narrativa fantástica, a qual ela explora muito bem em Sangue de Tinta, (segundo livro), Morte de Tinta (terceiro livro) e na trilogia Reckless. Essa última, por sinal, é a maior prova de que as trilogias da autora são, de fato, trilogias. Não é um primeiro livro escrito para ser independente e ter continuações “desprezíveis”, mas sim uma história ricamente construída em três partes. Um bom exemplo disso é o fato do primeiro volume de Reckless, A Maldição da Pedra, não ter me cativado tanto no início, mas o segundo, Sombras Vivas, ter sido genial. Dá pra perceber que é intencional. O primeiro livro apresenta alguns personagens de forma mais superficial, te deixa ver os defeitos e falhas deles. Já o segundo, além de enriquecer o mundo através do espelho criado pela autora, se aprofunda nos personagens, fazendo com que nós os amemos imensamente. Outro ponto no qual eu não sei se posso concordar com o Pedro é a escolha de Brendan Fraser. Não posso falar por mim, porque não assisti ao filme – ouvi falar que não era muito fiel ao livro e nem considerei arriscar ter um dos meus livros preferidos arruinados. Mas uma coisa não dá pra ignorar: nos agradecimentos do segundo ou terceiro livro (não me recordo exatamente qual agora) de Mundo de Tinta, Cornelia agradece a Brendan Fraser por ser exatamente o Mo que ela queria. Ela não faz comentário algum sobre nenhum outro ator do filme, só ele. Se a opinião da autora não serve de confirmação para a boa escolha dele para o papel, não sei o que serve.


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